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Para [des]territorializar os filmes

reflexões a partir de uma curadoria​

Diana Coelho

Jefferson Cabral

Não se vive em um espaço neutro e branco; não se vive, não se morre, não se ama no retângulo de uma folha de papel. Vive-se, morre-se, ama-se em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas.


Michel Foucault, O corpo utópico, as heterotopias.

Imaginemos uma personagem que acorda desmemoriada em algum ponto desconhecido de uma cidade qualquer¹. Ao lado das perguntas-chave sobre qual o locus social desta personagem e quem produzirá as imagens desta narrativa, interpelamos sobre o espaço, em qual parte desta cidade ela irá despertar? E mais adiante, em quais espaços da cidade ela irá refazer a sua identidade perdida? Como ela refará a si ao caminhar por locais públicos, privados, abertos, fechados ou de passagem?

Agora, pensando na cidade do Natal como a locação para esta história de busca por uma memória, quais serão os bairros escolhidos para dar sentido à vida desta personagem? Em que direção ela dará seus passos: ao norte, sul, leste ou oeste da cidade? A partir dos arredores, do centro ou de suas margens?

 

Esta curadoria reúne fragmentos desta investigação entre a cidade e a memória. Uma busca por identidades sociais e espaciais dentro dos filmes potiguares, uma pesquisa das imagens e dos discursos sobre o habitar a cidade do Natal. Para nós, o desenho desta pergunta contorna as territorialidades que dividem e unem os cotidianos dos e das natalenses.

 

As Zonas Norte, Sul, Leste e Oeste são planos urbanísticos que apresentam paisagens diversas, porém localizáveis e reconhecíveis por aqueles que vivem na cidade. Essas paisagens, assim como seu reconhecimento, são perceptíveis na totalidade dos filmes produzidos em Natal. O registro imagético do espaço urbano ou a imaginação narrativa do contraespaço ² resguarda os aspectos de corpo e alma da cidade ³, ou seja, a dimensão material e cultural de cada uma das zonas

Os filmes são tomados aqui como evidências da invenção destes espaços, eles marcam uma diferença entre a cidade sentida na rua e a olhada na tela, da mesma forma em que observamos a distância que há entre a cidade planejada e aquela vivida no cotidiano. Ainda assim, as imagens que os[as] realizadores[as] criam são arquivos do presente, indícios de um território marcado por uma estrutura colonial-capitalista, mas também pelos movimentos de insubordinação daqueles que vivem na cidade.

 

Assim, o desenho desta mostra se dá pelo espelhamento entre o espaço fílmico (das locações) e o espaço da cidade (do cotidiano), no qual são articuladas narrativas que para além da imagem como registro, querem fabular afetos e  dissidências, posicionar histórias, antidisciplinas  e subalternidades.

 

Esta mostra online reúne 16 filmes que cartografam a cidade do Natal ao longo de quatro programas. O caráter virtual desta mostra permite ao visitante escolher por qual sessão começar a assistir os filmes. Assim, deixamos em aberto qualquer centralidade ou preferência de escolha pelo início e fim da mostra. Neste princípio curatorial da [des]territorialização, os filmes em relação às zonas da cidade são agenciadas para um olhar opositor , aos espectadores pertence a montagem do olhar em relação ao seu entorno.

MOSTRA
NATAL
CINEMA
CIDADE

30 JUN -
31 JUL 2021

1. Uma pergunta disparadora inspirada pelo filme Janaína Colorida Feito o Céu (2014), de Babi Baracho.

2. FOUCAULT, M. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: Edições n-1, 2013, p. 20.

3. ARRAIS, R.; ANDRADE, A.;  MARINHO, M. O corpo e alma da cidade: Natal entre 1900 e 1930. Natal: EDUFRN, 2008, p. 13.

4. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1, artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 42.

5. HOOKS, B. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Editora Elefante, 2019, p. 227.

Com o programa Natal Zona Leste acompanhamos práticas cotidianas desafiadoras à ideia hegemônica de cidade. Em Cidade Descoberta (2021), de Julia Donati e Vivian Moura, um grupo de skatistas ocupa o espaço urbano, que a princípio não foi pensado por e para elas. Em Véu (2021), de Stéphanie Moreira, a performance de Inddigente Zu nos convida a questionar e a refazer leituras das corpas e do espaço citadino banhados pelas águas sagradas do Rosário. Já Entre Calçadão e Quebra-mar (2019), de Pedro Lucas, são reunidos em forma de testemunho os relatos dos vendedores das praias do litoral leste, em gestos antidisciplinares para sobrevivência. Enquanto que em Ribeira Velha de Guerra (1993), de Augusto Lula, o filme mais antigo da mostra, revelam-se camadas de discursos sobre a cidade baixa, ideias sobre a cidade que sobrevivem nas ruínas do bairro.

Outro grupo de filmes, no programa Natal Zona Oeste, reúne quatro documentários em que seus personagens lutam pelo direito de existir. Bascuio (2019) de Tupan Diego, constrói um relato conciso dos trabalhadores que recolhem o lixo por toda a cidade. Em Leningrado, Linha 41 (2017), de Dênia Cruz, ocupar não uma opção, é um firmamento do Assentamento 8 de Março pela construção de moradias e garantia de seus direitos na cidade. Em Abraço de Maré (2013), de Victor Ciriaco, uma família ribeirinha resiste e habita a cidade às margens do rio Potengi. E em Performance (2017), de Karina Moritzen, acompanhamos um dia na vida da artista Potyguara Bardo, que compartilha a sua história como drag queen numa cidade sem identidade.

Já no programa Natal Zona Norte, encontramos os afetos e conflitos no espaço da cidade. Em Te Guardo no Bolso da Saudade (2021) de Rosy Nascimento, uma filha escreve uma última carta para a sua mãe. E em Ainda que Eu Ande Pelo Vale da Sombra da Morte (2018), de Helio Ronyvon, outra filha e mãe se protegem como forma de seguir em frente. Já em Em Existe Vida na Moema (2018), de Jayne Pereira, existe um ato de registro in loco dos processos sociais e urbanos vividos pelos moradores da Av. Moema Tinoco, mais um capítulo nas histórias de desapropriações da cidade. E em Rap presenta (2015), de Wallace Yuri e Luara Schamó, ocorre o registro da primeira edição do Festival RAP presenta, um processo cultural jovem em curso de força inevitável.

Por fim, no programa Natal Zona Sul, histórias originárias e fabulações históricas repartem o espaço com narrativas de transformação interna. Em Curta os Congos (2021), de Raquel Cardozo, conhecemos a ancestralidade quilombola da Vila de Ponta Negra partilhada pela sabedoria do Congo de Calçolas. E em 44 (2018), de Henrique Arruda, imaginamos junto ao mar uma paixão entre dois homens durante o ano de 1944. Já em Vai Melhorar (2020), de Pedro Fiuza, uma mulher intervém no estado das coisas em uma cidade que lhe é estrangeira. Enquanto em Womaneater (2020), de Paula Pardillos, outra mulher se vê tendo de lidar com as sombras do que restou de um relacionamento abusivo.

Longe de instituir com os filmes uma delimitação rígida das identidades destas zonas, a estratégia de partilha desta curadoria segue um movimento de separar na ida, mas de reunir na volta. Os filmes estão aqui programados para estimular questões quando eles estão situados no mapa. Localizá-los, assim, se configura como um gesto político, para em seguida nos abrirmos para uma fruição expandida de suas narrativas, que extrapolam quaisquer delimitações.

Partilhamos aqui os filmes que exercem em nós a atividade de pensamento e imaginação sobre a cidade que habitamos. São imagens que arquivam um presente [in]visível aos olhos daqueles que [des]conhecem seus lugares. Nosso esforço foi de reconhecer nas obras o espaço social dado pelas imagens; são filmes que interpelam uma memória sobre a cidade também naquilo que relaciona-se aos discursos de quem filma e do que é filmado.

Ao ver os filmes a partir desta leitura dos territórios, apresentamos as obras para o olhar desejante de movimento e para o caminhar na cidade com as imagens. É se localizar e se perder dentro do filmes.

ASSISTA AOS FILMES:

Prancheta 3 cópia 12.png

zona

oeste

zona

norte

zona

leste

zona

sul

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